Olhe as luzes, meu amor

Annie Ernaux

Fósforo, 2024

Na seção dos queijos, presto atenção em um casal jovem. Eles estão hesitantes. Como se não estivessem acostumados, como se aquilo fosse novo para eles. Fazer compras juntos pela primeira vez é o prelúdio de uma vida em comum. É conciliar os gostos, o orçamento, combinar no que diz respeito à alimentação, essa necessidade primária. Convidar um homem ou uma mulher para ir ao supermercado não tem nada a ver com convidar para ir ao cinema ou para beber alguma coisa. Não há como se pavonear para conquistar o outro, não há possibilidade de enganação. Você gosta de queijo Roquefort? Reblochon? Este aqui veio direto do produtor. E se fizéssemos um frango assado?

Transgredir os limites de quais histórias e temas podem ser considerados dignos de literatura é um dos muitos êxitos da obra de Annie Ernaux, que há mais de quatro décadas se dedica a escrever a própria vida, sempre atenta à dimensão social e política do que é individual.

Nesta meditação investigativa escrita na forma de diário íntimo — e que compõe a coleção Raconter la vie [Narrar a vida] da editora francesa Seuil —, Ernaux volta sua atenção para o fenômeno dos grandes supermercados, espaço onipresente na vida moderna e domínio por excelência da mulher na sociedade patriarcal. Registrando suas visitas a um hipermercado dentro de um shopping perto de Paris ao longo dos meses, ela exercita o que considera um “modo impressionista de apreender coisas e pessoas”, isto é, “um livre registro das observações, sensações, para tentar capturar alguma coisa da vida que se desenrola ali”.

Sem, portanto, mobilizar leituras teóricas, apenas por meio de seu incansável poder de observação, Ernaux se alinha aos grandes intérpretes da vida moderna e oferece uma reflexão inovadora a respeito de consumo, classe e desejo na sociedade contemporânea.

Atenta tanto ao espaço que a circunda quanto ao tempo, outro tema recorrente em sua obra, ela ilumina aspectos pouco explorados da relação entre capitalismo e temporalidade: “neste lugar em que o tempo humano parece não existir mais, vencido pelo tempo das coisas, absorvido pela presença inerte das coisas, — cujo retorno cíclico, de acordo com os feriados e as estações do ano, é a única temporalidade perceptível —, tudo muda, na verdade, o tempo todo”.

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