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O narrador de "Um romance russo", de Emmanuel Carrère, e a promessa da autobiografia

Dissertação de mestrado, sob orientação da prof. Andrea Saad Hossne, defendida no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada (DTLLC) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFFLCH-USP)

Nov. 2016

Em um contexto literário contemporâneo atravessado pela escrita de si, este trabalho buscou estudar a obra Um romance russo, de Emmanuel Carrère, à luz das propostas da autobiografia e da autoficção, esta última uma expressão que convoca diferentes definições e justificativas. Para isso debruçou-se sobre a construção do narrador-protagonista, que declara ter como objetivo contar a história de seu avô para romper o silêncio em torno dela, imposto por sua mãe, e, assim, enterrar o fantasma desse homem que continuaria assombrando seus descendentes com sua personalidade amarga.

Observamos que o narrador, identificado ao autor, faz uso da metonímia em diferentes instâncias da obra: alinhava narrativas menores que remetem ao mesmo tema, apresenta personagens femininas que remetem à figura materna e o próprio protagonista se constrói em espelhamento com o personagem do avô. Tal recurso, somado a duas narrativas que se entrelaçam, organizando o texto de Um romance russo, age como argumentação em favor de seu objetivo, justificando a necessidade de romper com a proibição da mãe e publicar este livro.

Pela responsabilidade implicada na reabilitação da figura do avô, seguindo os moldes do que o crítico Dominique Viart propõe para o récit de filiation, e pela performatividade que objetiva, além das referências sem ambiguidade em seu texto, Carrère estabelece um pacto autobiográfico, como estudado por Philippe Lejeune, que é essencial para a leitura de Um romance russo.

Acreditamos que, embora o gênero moderno da autobiografia não se aplique nem a esta, nem a obras anteriores do mesmo autor, um autobiográfico percorre todas elas, recusando as possibilidades de pacto romanesco com que joga a autoficção; ainda, identificam-se em sua produção elementos como o uso comentado da psicanálise, incursões ficcionais demarcadas no texto, estruturas fragmentárias e hibridismo de formas que situam Carrère no debate contemporâneo.

"Trauma de família e hereditariedade: espelhamento nos personagens de Um romance russo, de Emmanuel Carrère"

Memória e trauma histórico: literatura e cinema. Org. de Andrea Saad Hossne e Sandra Nitrini.

Hucitec, 2018

clique na capa e conheça o livro no site da editora

Em Um romance russo, Emmanuel Carrére (2007) entrelaça duas narrativas a respeito de eventos que percorreram cerca de dois anos de sua vida, um relacionamento amoroso conturbado e as filmagens de um documentário na pequena cidade de Kotelnitch, no interior da Rússia. Concomitantes, as narrativas se relacionam pelo protagonismo do autor em ambas. Um terceiro elo é essencial para o tom de cada uma delas e do livro como um todo: trata-se de uma narrativa de fundo, aquela que reconta a trajetória do avo do autor, Georges Zourabichvili. Sua história, cuja transmissão pelas gerações seguintes da família seria problemática, segundo o autor, é o fundamento da obra: ela justifica sua publicação.

Publicado também na França: “Traumatisme familial et hérédité: miroitement dans les personnages d'Un roman russe, d'Emmanuel Carrère".

Constructions comparées de la mémoire. Littérature et cinéma post-traumatiques des années 1980 à nos jour. Org. de Isabelle Bleton, Florence Godeau, Fabienne Dumontet e Maria Coelho Ferreira. Paris: Hermann, 2018.